RESUMO:
Com a promulgação da Lei 14.553 em abril de 2023, as empresas passaram a ter a obrigação de coletar informações sobre a identificação do segmento étnico e racial de seus colaboradores. Tal obrigação traz impactos nos procedimentos e documentos gerados internamente, especialmente pelo departamento de recursos humanos, além de trazer a necessidade de cuidados no que diz respeito ao tratamento desses dados à luz da Lei Geral de Proteção de Dados.
O objetivo deste artigo é detalhar os impactos trazidos pela Lei 14.553/2023 para as empresas, bem como debater a importância de seu conteúdo para a redução da desigualdade racial.
Palavras-Chave: Lei 14.553/2023, raça, etnia, LGPD, inclusão racial
Em 24 de abril de 2023 foi publicada a Lei 14.553, que alterou os artigos 39 e 49 da Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010 (Estatuto da Igualdade Racial), trazendo importante mudança no procedimento de registro de empregados nas empresas.
A Lei determina que as corporações tem a obrigação de alterar seus registros administrativos para que contenham campos destinados à identificação do segmento étnico e racial ao qual seus empregados pertencem.
Como a lei não estabeleceu período de carência, as obrigações passaram a valer no dia de sua publicação, ou seja, 24 de abril de 2023, cabendo às empresas se ajustarem a essa nova realidade.
Na prática, cabe ao departamento de recursos humanos das empresas incluir um campo para identificação étnico-racial em documentos e registros trabalhistas, sendo certo que a lei estabelece os documentos e registros mínimos, quais sejam: (i) Formulários de admissão e demissão no emprego; (ii) Formulários de acidente de trabalho; (iii) Instrumentos de registro do Sistema Nacional de Emprego (Sine); (iv) Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) ou outro documento criado posteriormente com conteúdo e propósitos a ela assemelhados; (v) Documentos, inclusive os disponibilizados em meio eletrônico, destinados à inscrição de segurados e dependentes no Regime Geral de Previdência Social e (v) questionários de pesquisas levadas a termo pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou por órgão ou entidade posteriormente incumbida das atribuições imputadas a essa autarquia.
Importante apontar que o rol listado na lei é exemplificativo, devendo ser estendido a quaisquer outros documentos de registro administrativos direcionados a órgãos e entidades da Administração Pública.
Outro aspecto que deve ser observado com atenção é que a classificação racial é auto declaratória, ou seja, esses campos deverão ser preenchidos pelos empregados, de acordo com a forma como eles se identificam, em grupos previamente delimitados pelo IBGE (branca, preta, parda, amarela ou indígena), não cabendo ao empregador fazer qualquer juízo de valor ou interferência.
Um ponto de questionamento de diversas empresas é o que fazer se o empregado se recusar a preencher o campo?
Apesar do entendimento do Ministério de Igualdade Racial, no sentido de que os empregados têm a obrigação de fazerem a autodeclaração, como o campo é auto declaratório, é possível entender que a escolha de não preencher o campo de dados étnicos e raciais é uma resposta válida, que deve ser aceita pela empresa e pelos órgãos envolvidos, não sendo possível forçar o empregado a se auto declarar em uma das categorias disponibilizadas.
Nesses casos é sugerido, todavia, que o empregador documente essa recusa por parte do empregado.
Ainda, de acordo com o texto da Lei 14.553/2023, o IBGE passa a ter a obrigação de realizar, a cada cinco anos, uma pesquisa com o intuito de levantar o percentual ocupado por parte de segmentos étnicos e raciais no setor público.
De acordo com informação constante no sítio eletrônico do Senado Federal, as informações obtidas pelo IBGE "devem ser utilizadas na Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, instituída pelo Estatuto da Igualdade Racial com o objetivo de reduzir as desigualdades raciais no Brasil, com ênfase na população negra."
As modificações trazidas pela Lei 14.553/2023 trazem impacto direto nos departamentos de recursos humanos das empresas, que passam a ter a obrigação de incluir a informação sobre raça nos documentos mencionados acima.
Vale ressaltar, no entanto, que dados sobre raça e cor já são obrigatórios no e-social para Cadastramento Inicial do Vínculo e Admissão/Ingresso de Trabalhador (S-2200), Alteração de Dados Cadastrais do Trabalhador (S-2205), Trabalhador Sem Vínculo de Emprego/Estatutário - Início (S-2300), Cadastro de Beneficiário - Entes Públicos - Início (S-2400), e Cadastro de Beneficiário - Entes Públicos - Alteração (S-2405), mas não de forma sistemática e organizada.
Dessa forma, as empresas que já utilizarem o e-social e já tenham coletado os dados referentes à raça e cor, nesse sistema, não precisam coletar novamente esses dados, desde que à época a coleta do dado sobre raça tenha sido por auto declaração, devendo apenas observar que tais informações constem de quaisquer novos documentos que se enquadrem na definição legal.
A legislação traz impactos, ainda, às políticas de LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), uma vez que informações de raça e cor são consideradas como dados sensíveis, obtendo especial proteção do legislador. Por isso, é essencial que as empresas tomem os devidos cuidados para evitar penalidades em caso de vazamento desses dados.
Consequentemente, a coleta desses dados gera a necessidade dos controladores de manter os Registro das Atividades de Tratamento (ROPA) realizadas e elaborarem os respectivos Relatórios de Impacto a Proteção de Dados (RIPD), conforme estabelece a Lei n.º 13.709/18.
Ainda, uma vez que a coleta dos dados raciais e étnicos é obrigatória, se dando em cumprimento de obrigação legal, conforme previsão do artigo 11, II, alínea a da LGPD, não se vislumbra a necessidade da obtenção de consentimento por parte dos empregados.
O claro objetivo da Lei em questão é auxiliar no mapeamento da inclusão racial no âmbito corporativo, possibilitando a criação de ações afirmativas visando potencializar a presença de pessoas pretas e pardas nas organizações, em especial em cargos de gestão.
De acordo com Hélcio Martins Borges e Thais Porfírio, Cofundadores do Coletivo Quantos[1], "a Lei 14.553/2023 veio para firmar uma prática já iniciada de forma tímida em alguns segmentos empresariais, como por exemplo, há mineradoras que já possuem a prática de auto declaração no ato de inscrição para as suas oportunidades de vagas. Porém, precisamos entender que o mercado de trabalho como um todo traz consigo o racismo estrutural persistente na sociedade brasileira. Assim é preciso garantir em lei que a auto declaração ocorra para que se tenha um retrato mais fidedigno do avanço na inclusão e equidade de oportunidades para profissionais negros. Não podemos somente falar de inclusão, diversidade e igualdade, mas é preciso entender de fato como este processo ocorre e se realmente alcança os objetivos propostos" (informação verbal)[2].
Esse aspecto é especialmente sensível, uma vez que a desigualdade racial no Brasil ainda é gritante, apesar da tendência de crescimento da adoção do ESG no mundo.
De acordo com informações constantes no estudo "Desigualdade racial no mercado de trabalho brasileiro [recurso eletrônico] : uma análise da precariedade ocupacional na população negra", "somada à crise econômica, a crise sanitária ocasionada pela pandemia de COVID-19 corrobora a desestruturação do mercado de trabalho e agrava os níveis de precariedade, principalmente entre negros e negras, uma vez que as medidas provisórias adotadas nesse período, combinadas com a reforma trabalhista, faz com que trabalhadores e trabalhadoras - aqueles de mão de obra não ou pouco qualificada - se insiram no mercado informal e precário com maior incidência."
Ainda, de acordo com informações do IBGE, "os ocupados pretos ou pardos eram maioria (53,8%) no mercado de trabalho em 2021, mas estavam em somente 29,5% dos cargos gerenciais, enquanto os brancos ocupavam 69,0% deles. Na classe de rendimento mais elevada, somente 14,6% dos ocupados nesses cargos eram pretos ou pardos, enquanto entre os brancos essa proporção era de 84,4%".
Essa informação é confirmada por pesquisa realizada pelo Instituto Ethos, que determinou que as pessoas negras, que representam 52,9% da população do país, estão em sua maioria na condição de aprendizes e trainees, com proporção de 57,5% e 58,2%, mas que, no entanto, tais números caem para 35,7% do quadro funcional, 25,9% na supervisão, 6,3% na gerência, 4,7% no quadro executivo e apenas 4,9% nos conselhos de administração.
De acordo com Thais Porfírio, é "importante lembrar que a obrigatoriedade da auto declaração racial, por si só, não é uma ação afirmativa, mas tão somente uma estratégia para gerar dados mais sólidos para subsidiar estas ações. Ademais, o colorismo e a ausência de letramento racial poderão resultar em dados que não representam efetivamente a realidade racial das corporações, podendo máscaras desigualdades salariais e de progressão de carreira" (informação verbal)[3].
Além da emergente necessidade de mapeamento de negros e pardos ocupando espaço formal no mercado de trabalho, a fim que sejam planejadas e executadas ações afirmativas, a inclusão racial traz excelentes benefícios e vantagens às empresas.
No que diz respeito à concorrência, de acordo com uma pesquisa realizada pela McKinsey Company, dentre as empresas pesquisada, aquelas situadas dentre as 25% mais diversas do Brasil em termos de gênero e etnicidade racial têm 12% mais chances de superar os demais concorrentes do mercado analisado, ou seja, uma empresa diversa e inclusiva passa a ser mais competitiva, o que impacta diretamente na captação de consumidores e/ou na celebração de parcerias.
Ainda, empresas mais igualitárias apresentam índices até seis vezes maior no quesito inovação, de acordo com o relatório Getting to Equal 2019: Creating a Culture That Drives Innovation, da Accenture, fazendo com que o business se mantenha relevante e competitivo.
Finalmente, pesquisa realizada pela Oldiversity mostra que equipes mais diversas e uma preocupação real com inclusão reduz consideravelmente o risco de episódios de preconceito que irão, certamente, afetar a imagem da empresa.
Segundo a mencionada pesquisa, que tem entre seus colaboradores e apoiadores o grupo Pepsico, 60% (sessenta porcento) dos entrevistados afirmou que não consome marcas que consideram preconceituosas, enquanto que 44% (quarenta e quatro porcento) acreditam que as marcas deveriam investir em contratação de recursos humanos que representem a diversidade.
Em razão de todo o exposto, podemos concluir que a iniciativa legislativa é positiva, não onera as empresas e traz mais um importante passo no sentido de atingirmos igualdade racial no âmbito empresarial no Brasil.
Este artigo é de autoria de Samantha Monteiro Bittencourt, coordenadora do departamento jurídico da FFA Legal Ltda.
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[1] O Coletivo Quantos é um movimento formado por profissionais que atuam no segmento de mineração e infraestruturas associadas, autodeclarados pretos e pardos, com o propósito de monitorar, articular, mobilizar e sensibilizar nos diversos espaços, para que profissionais negras e negros ascendam a posições de liderança no setor minerário
[2] Fala de Hélcio Martins Borges e Thais Porfírio em conversa sobre o tema em 27 de junho de 2023
[3] Fala de Thais Porfírio em conversa sobre o tema em 27 de junho de 2023
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